A Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) promoveu a primeira edição do Projeto Cozinha e Voz, no estado, que formou 19 mulheres vítimas de violência doméstica, egressas e reeducandas do sistema prisional de Campo Grande. O projeto objetiva a inserção e reinserção de grupos vulneráveis no mercado de trabalho por meio da formação em assistente de cozinha.
Mato Grosso do Sul tem a maior taxa de prisões femininas do país, em números proporcionais, de acordo com informações do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). O estado também possui a maior quantidade de casos novos de denúncias criminais em violência doméstica contra a mulher, com 13,2 novos casos a cada mil mulheres residentes no estado, segundo dados de 2017 disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A iniciativa do Projeto teve apoio de instituições como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Ministério Público do Trabalho (MPT), Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Casa Poema e Escola Judicial do Tribunal de Justiça. O projeto foi realizado em outras capitais do Brasil como São Paulo, Salvador e Goiânia.
A juíza e coordenadora Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJMS, Jacqueline Machado relata que conheceu o projeto por meio de publicações em redes sociais sobre edições voltadas à formação para transexuais e travestis e entrou em contato com órgãos para auxiliar na realização do projeto do estado.
O projeto possui uma etapa dedicada à poesia e expressão corporal e outra direcionada à capacitação em gastronomia. Jacqueline Machado afirma que a etapa da poesia é fundamental para reestabelecer a fala, expressão e empoderamento da mulher. “Tem esse aspecto de melhorar a autoestima da mulher e também o aspecto de realmente preparar uma pessoa para entrar em uma cozinha. A postura que deve ter, o básico do trabalho do dia a dia em uma cozinha, as questões de higiene, tudo isso é visto no curso”.
A juíza ressalta que projetos que promovem a autonomia financeira feminina são importantes para que mulheres consigam sair de relacionamentos abusivos. “É importante fazer com que aquelas mulheres que estão com dificuldades de sair de um relacionamento abusivo em razão da dependência econômica consigam ter essa autonomia financeira para sair desse relacionamento. Outro aspecto é que essa mulher consiga, entrando no mercado de trabalho, ter outra perspectiva de vida e outro olhar para seus direitos. Então, ela precisa conhecer isso, entender seus direitos e lutar por eles”.
A atriz Geovana Pires ministrou palestras e oficinas durante três dias para que as mulheres inseridas no projeto pudessem se expressar melhor. De acordo com a atriz, as oficinas de poesia instruíram na harmonização, na coletividade e no indivíduo. “O projeto se chama Cozinha e Voz porque o que a gente faz é trabalhar todas as nossas expressões para vida, não só a fala. É como se a gente quisesse concatenar o nosso pensamento, o nosso querer, o nosso gesto, a nossa fala e colocar todos os nossos sentimentos aqui. Eu tive um prazer, eu vim aqui e eu me diverti, eu sofri, eu chorei e isso mostra que estamos vivos”.
A especialista em Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho da OIT, Thaís Faria explica que o projeto atende poucos grupos por edição para que a equipe envolvida conheça a história dos participantes e acompanhem seu desenvolvimento. “Eu trabalho nessa área há 20 anos e eu nunca vi um projeto tão humano na minha vida. É uma injeção de humanidade, é uma injeção de realidade, injeção de vida, de sair da caixinha, de sair da bolha, de sair do lugar comum, de conhecer gente”.

Segundo a chefe de cozinha e coordenadora técnica do Projeto Cozinha e Voz, Paola Carosella a iniciativa é uma forma de reduzir os problemas sociais existentes no país. A chefe de cozinha destaca que é possível melhorar a situação de desigualdade por meio da educação, do amor e de oportunidades igualitárias. “Esse projeto é incrível porque eu escuto e eu vejo tudo o que aconteceu, todas as coisas que a gente fez, todas as possibilidades, tudo o que eu aprendi, tudo o que eu me transbordei, a quantidade de pessoas incríveis que eu tive a sorte de ficar perto, as histórias que eu tive a sorte de ouvir, a riqueza que eu ganhei”.
Quatro formandas do Projeto foram convidadas, durante a cerimônia de encerramento do curso, para desenvolver estágio no Restaurante Escola do Senac. O presidente da Abrasel/MS, Juliano Wertheimer ressalta que as demais formandas serão encaminhadas para a Salt3, empresa de recursos humanos, que ficará responsável por direcionar as mulheres para entrevistas de emprego em bares e restaurantes da capital. “Eu não acredito em sorte, acredito em oportunidade e competência. Oportunidade todo mundo vai ter a partir de agora”.
A chefe de cozinha e docente do Senac, Míriam Arazini esteve na edição realizada em Salvador/BA para acompanhar o processo das aulas. Jovens da comunidade do Calabar, na capital baiana, foram o grupo prioritário da ação. Míriam Arazini explica que a experiência em dar aulas para públicos específicos é enriquecedora e inesquecível. “Se você já aprende muito quando é um curso regular, quando é um curso dessa forma, com esse tipo de público, é uma coisa que você sai transformada. Tenho certeza que foi muito mais crescimento para mim do que para elas”.
A docente do Senac esclarece que o projeto é uma forma de promover a dignidade para grupos que estão invisibilisados pela sociedade e que outras edições serão realizadas pelo país por meio de parcerias firmadas com empresas e instituições. “Essas meninas quando receberam a dolmã e viram o nome delas escrito na dolmã já tiveram a sensação de dignidade. É a única forma possível de mudar tudo o que está acontecendo no Brasil e é o mínimo a gente tem que dar de retorno da dívida que a sociedade inteira tem com pessoas que estão em vulnerabilidade. Dar educação para as pessoas é o que vai fazer a gente transformar esse país”.
Hilda Alli é uma das 19 formandas do projeto e explica que conheceu a ação por meio da juíza Jacqueline Machado. Ela afirma que se interessou e quis fazer parte da turma. A formanda ressalta que nunca trabalhou e que o curso propiciará a realização de um sonho. “Quando a juíza me falou, eu vim correndo. Nunca trabalhei, sempre fiquei em casa, mas sempre tive a vontade de ser independente. Todos os dias eu não via a hora do dia amanhecer para vir para o curso, estou muito feliz”.
